Os loucos do Reino

“Efetivamente, já que o mundo, com toda a sabedoria, não conheceu a Deus nas obras da sabedoria divina, foi por meio da loucura da pregação que aprouve a Deus salvar os crentes. Na verdade, os judeus pedem milagres e os gregos procuram a sabedoria; nós, ao contrário, pregamos a Cristo Crucificado, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gentios” (cf. 1Cor 1,21-24).

Eis aí, Senhor, um texto bíblico que me fala, claramente, de tua “loucura”, loucura de amor. Como podes, sendo tu um Deus, esvaziar-te do esplendor divino para vir morar conosco, e em nós, chamando-nos de irmãos, num mundo tão decaído como o nosso? A troco de quê quiseste morrer numa cruz? Não sabias que ela era maldição, reservada aos criminosos? (cf. Dt 21,23) Ah! Senhor, vejo que não tinhas realmente “juízo”! Olha o que provocaste na nossa História: foi preciso separá-la em duas partes. Uma, que se refere a tudo antes de ti, e outra, a tudo depois.

Vê então: mesmo antes de ti, por causa de teu nome, e de teu Reino, muitos cometeram “loucura”. Abraão, por exemplo, nem te conheceu, ficou “no desejo”, suspirando pelos teus dias, como tu mesmo um dia disseste (cf. Mt 13,17; Jo 8,56). Mas deixou ele a sua terra, a sua parentela, a casa rica dos pais, e foi para uma terra estrangeira, sem saber nem mesmo onde ela ficava. E para habitar em tendas!... Tudo por causa de teu reino. Dá para entender? E Moisés? Moisés deixou a grandeza faraônica, a nobreza da corte egípcia, para guiar um povo rude e, além disso, pelo deserto! Que é isto, senão viver, já antes de ti, a tua “loucura”? E os juízes, os profetas, como viveram? E como morreram? Isaías, eu sei, “foi serrado ao meio”! (cf. Hb 11,37). Por quê?

Não dá, Senhor, para falar de toda a “loucura” do Antigo Testamento. Não dá. Teria eu de falar de José, interpretando sonhos complicados; de Jacó, com sua escada milagrosa; de Jeremias, o profeta “chorão”, mas corajoso; de Daniel, outro entendedor de sonhos; de Sansão, com seus cabelos poderosos... É muita “loucura”, Senhor, deixa-me ficar por aqui. Mas, e depois de ti, na Nova Aliança, o que aconteceu?

Ah! eis aí, já bem no começo de tua Igreja, um pobre diácono morrendo apedrejado! O nome dele? Estêvão! E ainda dizia o tolo, Senhor, que via o Céu aberto e tu à direita do Pai, a reinar eternamente! (cf. At 7,56). “Louco”, “louquinho da silva”! Estava também me esquecendo: tu mesmo conheceste um tal de João Batista, parente teu, eu sei. Ele pregava no deserto e se alimentava de gafanhotos e de mel silvestre (Quanta loucura, meu Deus!). Dizem que preparava o teu caminho, não só como profeta, mas também como mensageiro. Mas... pobre João! Morreu degolado, pois quis dar lição de moral a Herodes. Ora, veja, lição de moral, logo a Herodes! E tu sabes, Senhor, sempre foi assim: palavra de rei não volta atrás! E os Apóstolos? Pobre Pedro! Na vida não mentia como “pescador”, mas, na hora do aperto, mentiu para uma criada, chorou muito depois e, para dizer a todos que não possuía a santidade de seu Mestre, quis morrer também crucificado, mas “de cabeça para baixo”!

Não, não vou continuar mencionando todos os “loucos” da Igreja primitiva. Teria de falar de Paulo, derrubado do cavalo, ensinando depois com sua teologia profunda, e com suas franquezas também; de João, o evangelista ancião, com sua ternura paterna, após ter deixado a rendosa profissão de pescador; de Tiago, com sua bravura, alertando os ricos e donos do mundo; de Lucas, que além de médico tornou-se historiador zeloso e evangelista da compaixão; de Mateus, sempre com a montanha na cabeça, querendo provar por A+B que o Messias prometido era de fato o Filho do Carpinteiro... É, Senhor, não vou parar, mas vou dar um “pulo” na História, para abreviar minhas considerações.

Francisco de Assis, Antônio de Pádua, Atanásio, Catarina de Sena, Inácio de Loyola, Vicente de Paulo, Francisco de Sales, Bento José Labre, Jerônimo... Sobre este tal de Jerônimo, dizem que viveu em caverna, traduzindo a Biblia, é verdade? E dizem também que teve palavras duras até com Agostinho, Ambrósio e Basílio, sobre as coisas do Reino. Escrevia livros e livros, e se tornou, por isso, um santo enciclopédico.

Estou sendo cansativo, Senhor, eu sei. Não vou também continuar mencionando os “loucos” da História mais antiga. Loucos de teu amor, é claro. Mas eu gostaria de citar apenas alguns “loucos” da Igreja mais atual. Não são muitos, e eu posso facilmente identificá-los. Não são muitos? Ah! meu Deus, como sou tolo! Como contar então os bispos, presbíteros, religiosos e religiosas, monges e monjas, missionários, diáconos e seminaristas, pais e mães de família, velhos, jovens e crianças etc., etc., etc.? Os primeiros, renunciando ao direito de constituir sua própria família, vivendo assim o celibato eclesiástico simplesmente por amor do Reino! Presidem eles a Eucaristia, o banquete dos simples, tão diferente do banquete que o mundo celebra, pregam a tua Palavra e, pelo teu mandato divino, perdoam os pecados de tanta gente, quando esta mesma gente, muitas vezes, não lhes perdoa a menor falta!

Muitos, Senhor, tu sabes, vão pelo mundo, em missões perigosas, sob contínuos perigos e ameaças, longe, pois, da família, de sua própria pátria, para levar a todos os homens o teu nome e a tua salvação. Outros vivem o serviço fraterno, e outros ainda têm, como lar, um simples mosteiro, ou uma pobre clausura. Muitos também, não propriamente ordenados, mas revestidos do sacerdócio batismal, unidos a ti portanto, carregam o peso de uma família, na fidelidade conjugal, contra toda a fúria do mundo, feridos, quase sempre, na sua dignidade. São “loucos” também, Senhor! Ser-lhes-ia mais fácil engolir as novelas, aceitar a pressão de um mundo consumista e deixar-se conduzir pelas mentes que só mentem. Nesse mesmo clima de “loucura”, rapazes e moças deixam o mundo das motos e dos barzinhos, para se reunirem em grupos, onde cantam as cantigas serenas de teu Reino e onde falam também de um mundo novo!

É isto mesmo, Senhor, são milhões e milhões os “loucos” de teu Reino. Milhões os “loucos” de hoje, graças a ti. Observaste Teresa de Calcutá? Ela andou pelo mundo, na pobreza, levando carinho a todos os pobres. Na idade que tinha, ficou abrindo “casas” para as suas filhas espirituais, não importa onde fosse. Prêmio Nobel, poderia, se quisesse, ter muito dinheiro no Invest e esperar a morte, tranquila, numa casa de campo ou "condomínio fechado", mas preferiu “investir” no Reino e morrer mais pobre do que quando nasceu. E João Paulo II? Como viste, ele não teve o sorriso de João Paulo I. Sua face, angustiada, se bem que serena, se deveu a quê? Ele não teve “juízo”, Senhor, não teve. Se, em sua própria pátria, tivesse ficado ao lado simplesmente de seu governo, não se opondo a ele, com toda aquela inteligência... Mas ele foi seduzido pelo Reino, e como foi seduzido!...

É, Senhor, vou parar. Sim, vou parar. De tanto falar de tua “loucura”, eu também já estou ficando contaminado por ela. Tua “loucura”, Senhor, é contagiosa, epidêmica. Mas eu a desejo e a procuro, com insistência. Dá-me, pois, uma gota, uma gota dela apenas. Faze que eu seja, pelo menos, o mais pequenino de teus “loucos’, o mais pequenino sim, sentado lá, no último lugar. Não me importa se o mundo vai me crucificar por isto. Seria uma grande honra, não? Sim, seria uma grande honra, pois eu já sei que uma gota da “loucura” de teu Reino vale mais, infinitamente mais, que toda a sabedoria deste mundo! 

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João de Araújo

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