Texto mistagógico do Sábado Santo

O texto abaixo é uma adaptação e uma ampliação por mim feitas  de antigas homilias pascais, dos séculos II e IV.  Nele, “cristão hesitante” é o discípulo fiel, porém ainda não consciente da missão libertadora do Filho de Deus, muito menos ainda de sua divindade e de sua ressurreição. Tal era a situação, podemos dizer, de todos os discípulos e até dos Apóstolos na paixão e morte de Senhor, como se nota nas narrativas bíblicas. Já o “mistagogo”, inexistente naqueles dias, aqui então por mim criado como um ser misterioso, seria visto depois na era apostólica e pós-apostólica, sobretudo na era dos Santos Padres. O  mistagogo por excelência, em toda a história da salvação, foi e continua sendo seguramente o próprio Espírito Santo. Guiando a Igreja, desde o início, ele tornou  principalmente os Apóstolos  verdadeiras testemunhas da ressurreição, como também os mais qualificados mistagogos do Reino.  

 
O cristão hesitante:

- Hoje, Sábado Santo, o que está acontecendo? Por que tamanho silêncio reina sobre toda a terra? Silêncio e solidão, eis o que vejo. Dize-me, ó mistagogo e escriba do reino, versado em coisas divinas, o que está acontecendo na terra? Por que toda ela se encontra estremecida? Não há cantos nem flores nem sorrisos nas faces. Não há convívio fraterno nem expressões de viva alegria. As igrejas parecem chorar, nelas os sinos estão mudos. Nos lábios cantantes, a ausência de canções. Dize-me, pois, anjo de Sião, dize-me com todas as letras, o que aconteceu no mundo?

O mistagogo:

- Sinto-me feliz, ó cristão hesitante, por poder iniciar-te na compreensão dos mistérios divinos. Escuta então, tu que tens ainda o coração lento para crer (cf. Lc 24,25), escuta: o Deus feito homem, o Rei eterno, na terra está dormindo. Deus morreu na carne e despertou todos os que há séculos nela dormiam. Ele vai visitar a primeira ovelha perdida, Adão, e, depois, todos os seus descendentes. Na visita que faz, em nome do Pai, ele leva nas mãos, não mais nos ombros, a cruz vitoriosa. Será este o seu troféu para sempre, o seu sinal de Rei vitorioso. Leva também nos pés, nas mãos e no lado as suas chagas gloriosas. Ele não quis fazer “plástica”, anulando-as, como muitos fariam, pois são chagas benditas de seu coração, capazes sempre de curar todas as chagas.

O cristão hesitante:

- O Senhor visita os mortos e com eles trava um diálogo fraterno, salvífico e cheio de paz, é isso? Então, entendo, já não estão mortos os mortos! Dize-me, pois, mistagogo, o que diz o Senhor aos mortos e o que os mortos respondem ao Senhor. Eis que essa linguagem, para mim, é muito estranha e misteriosa. Explica-me.

O mistagogo:

- Escuta então, jovem aprendiz, escuta: vendo Cristo aproximar-se, Adão exclamou para todos os mortos, cheio de admiração e batendo no peito: “O Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu, na alegria pascal: “E com o teu espírito, Adão. Aleluia! Aleluia!”. Tomando-o pela mão, disse o Senhor ainda mais feliz: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e eu te iluminarei”. E continuou dizendo: “Eu sou o teu Deus, que, por tua causa, me tornei teu filho. Por ti e por todos os que nasceram de ti, agora, com todo o meu poder, eu digo: saí todos vós da prisão. Vinde para a luz. Deixai, pois, o mundo das trevas. E a todos os entorpecidos, eu digo com firmeza: Levantai-vos! E a ti, Adão, a ti mais propriamente, eu repito: acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres na mansão dos mortos. Levanta-te, obra de minhas mãos, levanta-te. Levanta-te, ó minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança, levanta-te. Saiamos daqui, tu em mim, e eu em ti”.

O cristão hesitante:

- Até aqui, mistagogo da paz, falaste claramente. Os profetas, porém, falaram do reino em figuras, sem uma vital iluminação dos mistérios, linguagem então um pouco desconhecida dos mortais. Esclarece-me mais vivamente agora, quando realizadas - dizem - estão as profecias, agora, pois, que tudo já se tornou realidade. Meu coração ainda está cheio de dúvidas e de incertezas, e sobre o mundo pairam ainda as trevas do não-saber. Esclarece-me, pois, o quanto puderes, com a tua luz radiante.

O mistagogo:

- Para entenderes melhor, ó alma hesitante, coloca-te no lugar de Adão, com quem o Senhor dialoga. Eis, pois, que ele te diz: “Por ti, eu, o Senhor, tomei tua condição de escravo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra. Por ti, feito homem, tornei-me como alguém sem apoio”, não tendo em vida onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58) e, morto, precisei de túmulo alheio (cf. Jo 19,41). “Por ti, que deixaste o jardim do paraíso, ao sair de um jardim fui entregue aos judeus e num jardim eu fui crucificado e sepultado”. Mas “jardim” é lugar da vida, ó coração lento para entender, por isso ressuscitei e, ressuscitado, novamente te conduzo ao jardim de Deus.

O cristão hesitante:

- Agora sim, mistagogo fiel, identificado em Adão, e na clareza de tuas palavras, já posso entender, ainda que imperfeitamente, como é grande o mistério divino. Começo a entender como a morte, inimiga de Deus, e não dele nascida (cf. Sb 1,13), precisava de fato ser vencida, como o último inimigo (cf. 1Cor 15,26). Mas continua, mistagogo feliz, continua o teu ensinamento, a tua mistagogia. Sou filho de Adão, portanto um ser de barro, adâmico, e muito preciso saber de minha própria história.

O mistagogo:

- Então escuta, tu que caminhas para a luz, escuta o que Senhor diz a Adão e também a ti: “Vê em meu rosto os escarros que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê na minha face as bofetadas que levei, para restaurar, conforme a minha imagem, a tua beleza corrompida. Vê em minhas costas as marcas dos açoites que suportei por ti, para retirar de teus ombros o peso de teus numerosos pecados. Vê minhas mãos fortemente pregadas à arvore da cruz, por causa de ti. Sim, no passado estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso, querendo tornar-te Deus e, portanto, perdendo-te. Agora, estendi minhas mãos, noutra árvore, a cruz, para salvar-te e tornar-te Deus, como querias”.

 

O cristão hesitante:

- Começo então a perceber, pelas tuas palavras, ó mistagogo do reino, que a árvore está muito ligada à nossa história humana. Por ela nos perdemos e, por ela, o Senhor nos salvou. Lembro-me agora: o Senhor, tornando-se um de nós, e nascendo em Belém, foi numa árvore acolhido (presépio); numa árvore viveu toda a sua vida (carpintaria) e, numa árvore, morreu crucificado (a cruz). A cruz era, antes, sinal de maldição (cf. Dt 21,23; Gl 3,13), mas o Senhor, nela morrendo, transformou-a em árvore da vida e da glória (cf. Gl 6,14). Mistério, profundo mistério. Há “algo” ainda sobre a cruz que eu possa saber?

O mistagogo:

- Não é de “algo ainda sobre a cruz” que precisas saber, ó jovem cristão, mas de “quase tudo ainda sobre a cruz”. Deves, sim, entender um pouco mais sobre o seu mistério, pois até tentaste fazer da cruz uma síntese em tua empolgação. Então, vê: ela “não mostra apenas uma imagem mesclada do bem e do mal, como aquela árvore do Paraíso (cf. Gn 2,9), mas totalmente bela e magnífica. É uma árvore que não gera a morte, mas a vida; que não difunde as trevas, mas a luz; que não expulsa do Paraíso, mas nele introduz. Nela Cristo subiu, como um rei que sobe no carro triunfal, e venceu o demônio, detentor do poder da morte”.

 
Observa ainda, caríssimo, as prefigurações da cruz no Antigo Testamento, como árvore da vida. Ei-la, pois, prefigurada: na arca de Noé, esta de madeira resinosa, arca, pois, de salvação (cf. Gn 6,14); na lenha do holocausto de Abraão (cf. Gn 22,6); na escada de Jacó (cf. Gn 28,12), cujo sonho se realizou na elevação de Cristo na cruz (cf. Jo 1,51); na vara de Moisés, levantada sobre o mar, dividindo-o (cf. Ex 14,15), e a mesma vara ferindo a rocha (cf. Ex 17,5-6; Nm 20,10-11); e na vara de Aarão, ora transformando-se em serpente (cf. Ex 7,9-13), ora florescendo pela escolha do eleito de Deus (cf. Nm 17,20.23). Se nas prefigurações, a árvore já foi sempre vitoriosa, agora, a cruz, realizando todas as figuras, vai tornar-se verdadeiramente símbolo cristão e sinal vivo de salvação para todos. Assim, “pela cruz, todos os Apóstolos foram glorificados, todos os mártires coroados, e todos os que creem, santificados. Pela cruz, nós, ovelhas de Cristo, fomos reunidos num só rebanho e destinados às moradas celestes”.

 

O cristão hesitante:

- A minha interrogação sobre o mistério da cruz - que tu, com palavras sábias, esclareceste - interrompeu aquele diálogo de Cristo com Adão. Poderia eu ainda aprender mais sobre aquele diálogo tão importante?

O mistagogo:

- Sim, deves aprender, ó cristão redimido, mas, às vezes, tu falas como alguém que já sabe muito, quando, na verdade, ainda pouco sabes. Estás no início de uma longa aprendizagem cristã. Já que queres, ouve ainda, em diálogo de amor, a voz do Senhor, dirigida a Adão, e sempre a ti também: “Adormeci na cruz - diz ele - e, por tua causa, a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor de teu lado. Meu sono arrancou-te do sono da morte. A lança que me foi dirigida deteve a lança que estava dirigida contra ti. Levanta-te, pois, ó filho da terra, e ouve estas palavras eternas: o inimigo expulsou-te do paraíso, eu, porém, já não te coloco simplesmente no paraíso, mas num trono celeste. Pelo inimigo, foste afastado da árvore, símbolo da vida, eu, porém, que sou a vida, sempre agora estarei junto de ti”.

E ainda poderás ouvir, alma vacilante, e eu te exorto a ouvires não apenas com os ouvidos, mas com o coração: “Ordenei - diz o Senhor - ordenei aos anjos que te guardassem e te servissem, como a Deus, embora não sejas Deus. Eis finalmente então preparado para ti o trono dos querubins. Prontos e a postos estão os mensageiros celestes. Construída a casa definitiva para a vida definitiva. Preparado está o banquete das núpcias eternas. As mansões e os tabernáculos celestes estão adornados. Eis abertos todos os tesouros e todos os bens. Em resumo: o reino dos céus está preparado para ti desde toda a eternidade. Sim, porque hoje, eu, o teu Salvador, arrombei as portas da morte e quebrei os seus ferrolhos. Destruí, dando a minha vida na cruz, o poder da morte, as prisões do inferno e derrubei para sempre o poder satânico. Comigo, como filho também amado do Pai, poderás então dizer: Ó morte, eu serei sempre a tua morte! Inferno, eu serei sempre a tua ruína”!

O cristão hesitante:

- Mestre, sei que tudo o que já conversamos se refere ao Mistério Pascal de Cristo. Diz-se que ele é o centro de nossa fé, o desígnio eterno do Pai, revelado no Filho. Mas sou iniciante, tu sabes, e não saberia descrevê-lo, se preciso fosse. Fala-me um pouco sobre ele, por favor.

O mistagogo:

- Presta atenção, caríssimo: o mistério pascal é, ao mesmo tempo, novo e antigo, eterno e transitório, corruptível e incorruptível, mortal e imortal. É mistério antigo segundo a lei; novo, segundo a graça; é transitório, pela figura; eterno, pela realidade da graça; corruptível, pela imolação do cordeiro; incorruptível, pela vida do Senhor; mortal, pela sua sepultura na terra; imortal, pela sua ressurreição dentre os mortos. Na verdade, ó filho de Adão, o Senhor, como ovelha foi levado ao matadouro, contudo, não era ovelha; era como cordeiro silencioso (cf. Is 53,7) e, no entanto não era cordeiro. Sim, porque a figura passou, e eis a realidade perfeita: em lugar de um cordeiro, Deus; em vez de uma ovelha, o homem; no homem, porém, apareceu Cristo, que tudo contém.

Para a tua instrução final, ó jovem aprendiz, eis aqui uma pequena síntese: a Lei se fez Palavra e, de antiga, tornou-se nova; o preceito deu lugar à graça; a figura transformou-se em realidade; o cordeiro em Filho; a ovelha em homem; e o homem em Deus. E ainda: na culminância do amor divino pelo homem, Deus, sendo Deus, fez-se homem e sofreu por aquele que sofria; foi encarcerado em lugar do prisioneiro; condenado em vez do criminoso; e sepultado em vez do que jazia no sepulcro. Mas, sobretudo, ressuscitando dentre os mortos, destrói a morte, triunfa do inimigo, calca aos pés o Inferno e arrebata o homem para as alturas dos céus. E o Cristo vitorioso, em mistério, vai dizer-nos finalmente: “Eu sou o vosso perdão, a vossa Páscoa, o cordeiro por vós imolado, a água que vos purifica, a vossa vida, a vossa ressurreição, a vossa luz, o vosso rei. Vinde, pois, benditos de meu Pai, o céu vos espera, eis que, com minha morte e ressurreição, ele vos foi aberto para sempre”.

Tudo isso, pois, ó jovem cristão, constitui o cerne do Mistério Pascal de Cristo, isto é, sua paixão, morte, ressurreição e glorificação eterna.

Agora preciso despedir-me de ti, ó jovem feliz. Sei que já estás um pouco crescido nos mistérios do amor. No silêncio da paz, vou agora mergulhar-me um pouco mais no abismo de nosso Deus. Faze tu também o mesmo. Vê: a tarde já cai, o sol se esconde, aproxima-se a hora da Solene Vigília Pascal. Depois de teu descanso, no silêncio do mistério divino, vai então, une-te aos teus e, com o coração transbordante já de alegrias pascais, celebra a festa da vida, a vitória definitiva do amor. Amém! Aleluia! Aleluia!

 



João de Araújo

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