Solenidades do Senhor no Tempo Comum

 

1- No segundo milênio de nossa era, a intervalos longos, surgiram na liturgia quatro solenidades do Senhor não pertencentes aos dois ciclos festivos do Ano Litúrgico. São elas: Santíssima Trindade, Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor (Corpus Christi), Sagrado Coração de Jesus e Cristo Rei. São celebrações móveis, isto é, dependentes da festa da Páscoa.

 

2 - Tais solenidades não colocam determinados acontecimentos salvíficos em primeiro plano, mas transformam certas verdades da fé em objeto de festa, como de louvor ou de ação de graças, por exemplo. Adolf Adam diz: “Por terem nascido de uma atitude determinada por certo tipo de piedade da sua época e por terem sido entendidas como um meio especial de ajuda à Igreja em meio às suas aflições internas e externas, podemos incluí-las no grupo das festas devocionais”.

 

3 - Não vamos, porém, tecer aqui considerações sobre as razões históricas da entrada dessas solenidades no calendário litúrgico. Isso valeria como estudo mais acadêmico, mas seria menos útil a uma pastoral litúrgica e catequética. Alguma informação contudo poderá ser acrescentada no trabalho, mas sem a preocupação de correção histórica.

 

4 - Digamos então que, embora “temáticas”, são profundamente ricas as celebrações aqui em foco, pois nos ajudam a aprofundar mais o Mistério Pascal de Cristo, nele nos inserindo de maneira celebrativa, e só as celebrando assim podem tais solenidades ser por nós compreendidas e vividas.

 

SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE

 

5 - Esta solenidade, que se celebra no domingo depois de Pentecostes, quer trazer-nos aquele aspecto trinitário do tempo pascal, ou seja, a obra redentora de Deus, que se operou no Cristo Jesus pela ação viva e eficaz do Espírito Santo. O Deus dos cristãos é um Deus Uno e Trino, e é na mesma dimensão trinitária que se consumou a obra da redenção.

 

6 - De fato, Cristo veio cumprir a vontade do Pai (cf. Jo 17,4; Hb 10,7) e nos deu o Santo Espírito (cf. Jo 20,22), e sua ação na Igreja vai sempre ser entendida na dinâmica do Deus trinitário. Assim, só podemos celebrar o mistério sublime de nossa fé (que se encontra, em síntese, na celebração da Eucaristia), “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, e somente com “a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo” podemos caminhar na peregrinação da fé, vencer os obstáculos dos caminhos de nossa vida e chegarmos, finalmente, à pátria celeste.

 

7 - Vê-se, pois, que não celebramos a Trindade apenas uma vez no ano, em festa isolada, como parece, mas a celebramos, na verdade, diariamente, em toda Eucaristia e, de maneira mais viva e solene, na Eucaristia dominical.

 

8 - Digamos ainda que o amor de Deus se manifesta, verdadeiramente, na graça de Jesus Cristo e opera livremente na comunhão do Espírito Consolador. Assim, o mistério da Trindade, totalmente incompreensível, mistério sublime de nossa fé, não se acha, porém, distante de nós, como um luzeiro inacessível, possibilitando-nos apenas fazer formulações sobre a sua transcendência, mas de fato se acha presente em nós, na mais perfeita imanência, dando-nos já a experiência do amor divino.
Assim, na obra da redenção, a transcendência e a imanência de Deus se harmonizam admiravelmente, como nos revela a Sagrada Escritura, tirando-nos o vício de fixação num dos aspectos somente. Com tal visão bíblica e litúrgica, nossa vida cristã se vê mergulhada em tão augusto mistério (cf. Ef 4,4-6; Rm 8,14; Fl 2,1-2).

 

9 - O mistério da Trindade, não celebrado, pois, tematicamente no ciclo pascal, ou, mais propriamente no Tempo Pascal, acha-se aqui como síntese de toda a Páscoa. Na sua grandeza e na sua essência, não deve ser objeto de especulação, mas deve ser - isto sim - uma experiência de vida cristã na profunda comunhão dos filhos de Deus.

 

10 - Finalmente, podemos dizer que a festa da Trindade pode ser considerada “como uma espécie de olhar retrospectivo de ação de graças sobre todo o mistério salvífico que o Pai opera no Filho pelo Espírito Santo”, segundo antigo entendimento teológico.

 

11 - As leituras bíblicas da solenidade são distintas nos três ciclos anuais, possibilitando assim um enfoque ainda maior e diversificado na Liturgia da Palavra, mas o Evangelho é só de Jo e Mt, como se vê. Eis as perícopes:

 

Ano A

 

Ex 34,4b-6.8-9

Sl Dn 3,52.53-54.55.56

2Cor 13,11-13

Jo 3,16-18

 

Ano B

 

Dt 4,32-34.39-40

Sl 33 (32),4,5.6.9.18.19.20. 22

Rm 8,14-17

Mt 28,16-20

 

Ano C

 

Pr 8,22-31

Sl 8,4-5.6-7.8-9

Rm 5,1-5

Jo 16,12-15

 

SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DE CRISTO (CORPUS CHRISTI)

 

12 - Sem preocupar-se também aqui com os dados históricos quanto à inclusão desta solenidade no calendário litúrgico, deve-se dizer apenas que sua origem está ligada à devoção ao Santíssimo Sacramento, que floresceu fortemente ao longo do século XII e na qual se realçava a presença real do “Cristo todo” no pão consagrado.

 

13 - Na noite de Quinta-Feira Santa, tendo mandado preparar uma sala, adequadamente (cf. Mc 14,12-16; Lc 22,8-12), Cristo Nosso Senhor, desejando ardentemente celebrar a páscoa com os seus discípulos (cf. Lc 22,15), instituiu o Santíssimo Sacramento da Eucaristia como alimento vital e salutar do povo por ele congregado no Espírito Santo. A instituição da Eucaristia tornou real o mistério por ele ensinado sobre o alimento de seu próprio Corpo e de seu próprio Sangue, como condição indispensável para se entrar no Reino do Céu (cf. Jo 6,52-58).

 

14 - A Igreja, tendo, pois, já celebrado esse augusto mistério no Tríduo Pascal, na noite da Quinta-Feira Santa, comemorando e atualizando a ação salvífica do Senhor, mas não tendo podido expressar a sua profunda alegria por tão grande dom do Pai, por celebrar, ao mesmo tempo, o início da Paixão do Senhor, por antecipação, celebra então agora, no clarão irradiador do Senhor Ressuscitado, todo o sacrossanto mistério, inflamado ainda mais pela luz viva do Santo Espírito de Deus.

 

15 - Somente à luz do Espírito Santo Paráclito pode-se entender a força do novo maná como experiência de um novo Reino (cf. Jo 6,53). Para os judeus, o pão multiplicado era simples sinal de alimento corporal, que procuravam por interesse puramente natural (cf. Jo 6,26). Para Cristo, porém, nas lições do reino (cf. Jo 6,51-53), o pão deve ser somado e partido (símbolo da ação sacrifical, em que se separa, no Calvário, o seu Corpo e o seu Sangue), e repartido (exigência da comunhão dos filhos de Deus).

 

16 - O pão que desceu do céu (cf. Ex 16,4.15; Dt 8,3), para Cristo foi simples figura, pois o verdadeiro pão, que desce do céu, é agora ele próprio, a sua Pessoa, alimento então definitivo de seu povo (cf. Jo 6,33-35.58). Seu Corpo, dado por nós, e seu Sangue, por nós derramado (cf. 1Cor 11,23-26), são, pois, o Pão e o Vinho da imortalidade. Não uma hóstia mágica, que nos leva direitinho para o céu, mas uma fração viva do seu Corpo a exigir sempre e sempre participação também em sua missão salvadora. No plano horizontal - diríamos - por uma concreta comunhão com os irmãos, na partilha do pão da vida, na vivência da justiça, da paz e da fraternidade. No plano vertical - diga-se - por uma profunda atitude de piedade filial, de espiritualidade voltada para as “coisas do alto” (cf. Cl 3,1-2).

 

17 - Em síntese, podemos dizer que a participação no Corpo e no Sangue do Senhor só se torna verdadeiramente plena quando, em nossa vida, realizamos a verdadeira comunhão desejada por Cristo: sermos todos um só coração, pulsando no Coração de Deus, na unidade do Deus Uno e Trino (cf. Jo 17,21), o que significa, em expressão mais teológica, sermos o corpo eclesial de Cristo, a Igreja, como suplica a Oração Eucarística na segunda epiclese (sobre os comungantes), e de que não se tem muita consciência, infelizmente.

18 - Instituída na noite da Quinta-Feira Santa, a Eucaristia, ao mesmo tempo sacrifício e sacramento, perpetua o sacrifício da Cruz, “banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em alimento” (SC 47), penhor da glória futura, sacramento de fé, em que elementos da natureza, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e no Sangue glorioso (GS 38b), prelibação, pois, da páscoa definitiva e eterna e banquete celeste das núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19,9).

 

19 – A solenidade de Corpus Christi é celebrada na quinta-feira após a celebração da Santíssima Trindade, e os textos bíblicos de suas leituras se distinguem também nos ciclos anuais, mas o Evangelho será de Jo, Mc e Lc, como se vê abaixo.

 

Ano A

 

Dt 8,2-3.14b-16 a

Sl 147, 12-13.14-15.19-20

1Cor 10,16-17

Jo 6,51-58

 

Ano B

 

Ex 24,3-8

Sl 116,12-13.15-16bc.17-18

Hb 9,11-15

Mc 14,12-16.22-26

 

Ano C

 

Gn 14,18-20

Sl 110(109),1.2.3.4

1Cor 11,23-26

Lc 9,11b-17

 

SOLENIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

 

20 - Comentando esta solenidade, Adolfo Adam diz: “Nesta solenidade, celebrada na terceira sexta-feira depois de Pentecostes, temos uma festa devocional típica em que se celebra o Homem-Deus do ponto de vista de seu amor simbolizado no coração. As primeiras manifestações de um culto ao Sagrado Coração se acham já nos Padres da Igreja que se apóiam sobretudo em certas passagens do evangelho de João...” E cita, como exemplo Jo 7,37; 19,34.

 

21 - Pois bem. O carinho de Deus se acha explicitado já no Antigo Testamento (cf. Os 11,3-4) e, na libertação da escravidão do Egito, o povo de Deus pôde experimentar, concretamente, o amor de um Pai amoroso e a ternura de um coração apaixonado pelos filhos que tanto ama.

22 - O Pai mostra, pois, aos filhos sedentos os mananciais da salvação (cf. Is 12,3) e prova ao povo eleito que sua eleição é fruto de seu amor (cf. Dt 7,6-11). Seu amor divino e eterno (cf. Jr 31,3) é que torna o seu povo amável, ou seja, Deus não nos ama porque somos amáveis, mas se somos amáveis é porque Ele nos ama.

 

23 - Mas a coroação do amor do Pai, isto é, a sua manifestação visível, tornou-se mais expressiva em Cristo, “manso e humilde de coração” (Mt 11,29). A solenidade que se celebra em honra do Sagrado Coração de Jesus não é, porém, uma festa de sentimento emotivo, para um “coração sofredor”. O coração, transpassado por uma lança, do qual brotou sangue e água (cf. Jo 19,34), torna-se, ainda mais, fonte de misericórdia. Do lado aberto deste Coração Sacratíssimo, dormindo na cruz, nasce a Igreja, admirável sacramento de redenção. Sangue, aqui, símbolo do mistério eucarístico; e água, símbolo do Espírito regenerador e transformador de corações (cf. LG 3).

 

24 - O amor de Cristo une a criação à redenção, tornando esta plenitude daquela. E aqui o Coração redentor primeiro se sacrifica para, depois, ser glorificado. Primeiro, a cruz; depois a glória. Coração, pois, sacrificado, que, no sacrifício, encontra a expressão mais viva do perdão, ou seja, a fonte mais viva ainda do amor misericordioso (cf. Lc 23,33). Essa não é, sabemos, a linguagem do nosso mundo decaído, que exalta o amor na medida em que não é sacrificado, e que o sacrifica e dele debocha, quando ele se expressa em sua face verdadeira.

 

25 - Os desígnios do amor de Deus (cf. Jr 29,11) despertam também em nós a gratuidade de nosso amor para com nossos irmãos. Se somos amados por Deus como filhos, mesmo na nossa mesquinhez humana, devemos ter a mesma atitude amorosa e gratuita para com todos os homens, mesmo neles não encontrando uma afeição amável, como é o caso de tantos “trastes humanos” que povoam o nosso mundo. É difícil chegar a esse grau de virtude com relação ao nosso mundo, mas não devemos nos esquecer de que é justamente isso o cerne da celebração litúrgica do Sagrado Coração de Jesus, ou seja, mostrar-nos que é possível amar na medida de um amor sem medida, e que “o objeto, portanto, do culto ao Coração de Jesus é o próprio Senhor visto através deste Coração”.

 

26 - Como nas celebrações anteriores, os textos bíblicos também desta solenidade se distinguem nos ciclos anuais, mas com o evangelho de Mt, Jo e Lc. Eis as perícopes:

 

Ano A

 

Dt 7,6-11

Sl 103(102),1-2.3-4.5-7.8.10

1Jo 4,7-16

Mt 11,25-30

 

Ano B

 

Os 11,1.3-4.8c-9

Sl Is 12,2-3.4bcd.5-6

Ef 3,8-12.14-19

Jo 19,31-37

 

Ano C

 

Ez 34,11-16

Sl 23(22),1-3ab-4.5-6

Rm 5,5-11

Lc 15,3-7

 

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO REI DO UNIVERSO

 

27 - Popularmente conhecida como “Festa de Cristo-Rei”, esta celebração é a mais recente dentre as quatro chamadas “Solenidades do Senhor”, que a Igreja celebra no Tempo Comum. Sua origem se deve ao papa Pio XI, o qual, na Encíclica “Quas primas”, de 11 de dezembro de 1925, “desenvolve a idéia de que um dos meios mais eficazes contra as forças destruidoras da época seria o reconhecimento da realeza de Cristo”, na restauração de todas as coisas, como reza então a Oração do Dia, na referência ao projeto de Deus. Sua instituição comemorou o 16º centenário do Primeiro Concílio de Niceia, no qual se proclamou a igualdade substancial entre Cristo e o Pai.

28 - Inicialmente foi fixado o último domingo de outubro para a sua celebração, tendo em vista a proximidade da Solenidade de Todos os Santos, “a fim de que se proclamasse abertamente a glória daquele que triunfa em todos os santos e eleitos”. Porém, com a reforma litúrgica do Vaticano II, sua celebração passou para o 34º domingo do Tempo Comum, último domingo então do Ano Litúrgico, com os textos da Liturgia, tanto bíblicos como eucológicos, fortemente voltados para o sentido escatológico e da realeza de Cristo.

 

29 - O sentido da criação e da restauração do mundo em Cristo (cf. Cl 1,15-20), que se consumou na sua Paixão, Morte e Ressurreição, com sua vitória definitiva sobre a morte (cf. 1Cor 15,26), sendo o Cordeiro imolado digno de receber a glória e o poder (cf. Ap 5,12), traz realmente a característica principal desta solenidade: Aquele que restaura o mundo, nele próprio criado e nele próprio subsistente, é aquele também que vai exercer sobre ele a sua realeza, e esta transcende a dimensão temporal e cósmica, isto é, os domínios de um mundo visível. A realeza, pois, que se celebra nesta solenidade é total, plena e celeste, exercida à direita do Pai (cf. At 7,56; Hb 1,3-4; Ap 22,1).

 

30 - Saibamos também que a realeza de Cristo é aquela que se manifestou no sacrifício da cruz, com seu paradoxo, com sua “loucura” e com sua simplicidade redentora. Portanto, “supera de longe o modelo davídico”, embora seja, biblicamente, de sua linhagem. Escarnecido por espectadores (cf. Mt 27,39-44), insultado pelo ladrão impenitente (Lc 23,39) e por soldados da vassalagem imperial (Lc 22,63-65), reverenciado, porém, pelas santas mulheres, dentre elas sua própria Mãe, estimado por discípulos e amigos, mesmo trêmulos e distantes, eis o quadro doloroso da Cruz. Mas, saibamos: em sua soberana realeza, ele pôde livremente dar ao ladrão arrependido a dimensão mais profunda de seu poder e de sua misericórdia, afirmando: “Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43), como vai concluir o evangelho da celebração do Ano C. E os Santos Padres comentam: se ele disse isto a um ladrão, certamente dirá o mesmo a cada cristão comprometido com o seu Reino.

 

31 - Na verdade, “hoje”, ou seja, “agora”, para mim, para você, para todos, e não só para o ladrão arrependido, começa então de maneira viva, eficaz, definitiva e solene, o início da imortalidade, com nossa participação definitiva na realeza de Cristo, inseridos que fomos, pela graça batismal, no seu sacerdócio, graça que nos confere ainda a dimensão régia e profética para a nossa vida.

 

32 - Na riqueza dos textos bíblicos, a Liturgia proclama que Cristo é a origem, o centro e o fim do universo criado, como também a sua consumação mais profunda, na medida em que o restaura e o entrega ao Pai (cf. 1Cor 15,24). O Rei da eterna realeza é então o mesmo, “ontem, hoje, e por todos os séculos” (cf. Hb 13,8), como também é “o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (cf. Ap 22,13).

 

33 - É salutar para a nossa vida cristã saber que Cristo, no seu Mistério Pascal, fez de nós um reino de sacerdotes para Deus (Ap 5,10) e, ressuscitado, garantiu a nossa ressurreição, pois “Ele é o Senhor que destruirá também a morte como o último inimigo (cf. 1Cor 15,26). Assim a Igreja, unindo sua oração à riqueza da palavra bíblica, já no início da celebração vai permitir-nos rogar a Deus com o coração cheio de confiança: “...fazei que todas as criaturas, libertas da escravidão e servindo à vossa majestade, vos glorifiquem eternamente”.

 

34 - Podemos dizer que o Reino de Cristo é, pois, um reino que começa por dentro e que não se deixa corroer por forças exteriores, opostas a ele, ou não muito propensas a submeter-se a ele. É o reino da verdade, que dá testemunho da Verdade (cf. Jo 18,37), e não como os reinos deste mundo, que manipulam a verdade, fabricando-a a seu gosto, substituindo-a pela mentira, fazendo com que ambas (verdade e mentira) vistam a mesma roupagem e dando-lhes o mesmo conceito e o mesmo valor.

 

35 - Diga-se mais, mesmo com a pobreza de nossas palavras: o Reino de Deus não é um reino de interesses mesquinhos, de vassalos e de escravos, mas um reino de amor, de servidores fiéis, cujo Senhor não se contenta com “servos”, mas que abre seu coração para a intimidade de “amigos” (cf. Jo 15,15) e de “irmãos” (cf. Jo 20,17). Nesse Reino, a sabedoria está oculta aos sábios, doutores e entendidos, mas revelada aos humildes e aos pequeninos (cf. Mt 11,25; Lc 10,21).

 

36 - Finalmente, pode-se afirmar que esta celebração, colocada no fim do Ano Litúrgico, como que o coroa na glória do Cristo-Rei, no esplendor do Mistério Pascal, fazendo também ressoar em toda a Igreja e na vida de todos nós o caráter escatológico de toda a Liturgia e seu dinamismo santificador.

As leituras bíblicas desta solenidade se distinguem nos ciclos anuais, com o evangelho de Mt, Jo e Lc. Ei-las, pois:

 

Ano A

 

Ez 34,11-12.15-17

Sl 23(22) 1-2a.2b-3.5-6

1Cor 15,20-26a.28

Mt 25,31-46

 

Ano B  

 

Dn 7,13-14

Sl 93(92) 1ab.1c-2.5

Ap 1,5-8 Jo 18,33b-37

 

Ano C

 

2Sm 5,1-3

Sl122(121) 1-2.4-6

Cl 1,12-20

Lc 23,35-43

 

AINDA TRÊS ‘FESTAS’ DO SENHOR NO TEMPO COMUM

 

37 - Três celebrações, aqui com o grau de “festa”, e fixas, ocorrem ainda no Ano Litúrgico, dedicadas ao Senhor. São elas: Apresentação do Senhor, em 2 de fevereiro; Transfiguração do Senhor, em 6 de agosto; e Exaltação da Santa Cruz, em 14 de setembro. Se tais festas caírem em domingo, então são nele celebradas, dada a precedência litúrgica sobre o domingo do Tempo Comum, por se tratar de “festas do Senhor”, de acordo com as normas da liturgia, quando então vão ter o grau litúrgico do domingo, isto é, com três leituras e com I Vésperas na Liturgia das Horas.

 

38 - Em dias feriais, como “festas” portanto, só são celebradas com duas leituras, podendo a primeira ser escolhida entre as duas que precedem o evangelho. Também, como “festas”, de acordo com a Liturgia, não têm I Vésperas na Liturgia das Horas. Diferentes das Solenidades do Senhor, as festas aqui comentadas têm as mesmas leituras bíblicas para os três ciclos anuais, exceto a da Transfiguração do Senhor cujo evangelho muda de acordo com o ciclo anual. Vejamos então cada festa em separado.

 

 

APRESENTAÇÃO DO SENHOR (2 de fevereiro)

 

39 - Esta festa é de caráter natalino, mas deslocada do ciclo do Natal, e tem como objeto os acontecimentos bíblicos ocorridos no Templo de Jerusalém, narrados por Lc 2,22-39. A figura central é Jesus, e não Maria, como predominava anteriormente na liturgia. Festa, portanto, cristológica, mas que tem Maria também como personagem viva e atuante.

 

40 - A festa chamava-se “Purificação de Nossa Senhora”, por um equívoco, uma vez que a Santa Mãe de Deus é imaculada, e o parto de Jesus foi virginal, como narra a Bíblia. Mesmo humildemente cumprindo a lei, como mera observância legal, não se deve, na liturgia, enfatizar tal prescrição ritual. O povo precisa de orientação segura, mesmo assim muitos, contemplando os mistérios gozosos do Rosário, por exemplo, ainda dizem: “No quarto mistério contemplamos a apresentação de Jesus no Templo e a “purificação de Nossa Senhora”, sem saber, porém, de que se trata.

 

41 - Como se sabe, todo primogênito varão era considerado propriedade de Deus (cf. Ex 13,12), e devia ser resgatado por uma soma de dinheiro, a título de sacrifício. Os pobres tinham um tratamento especial quanto ao resgate (cf. Lv 5,7), como aconteceu com a família de Nazaré (cf. Lc 2,24). A festa tem portanto como tema o fato bíblico da apresentação de Jesus por José e Maria, quarenta dias após o seu nascimento, em cumprimento da prescrição legal de Lv 12,2-4.

 

42 - A liturgia da festa, na liturgia renovada, enfatiza então não tanto os acontecimentos das prescrições legais do Antigo Testamento, mas a realidade da luz, lembrando as palavras de Simeão “Luz para iluminar as nações” (cf. Lc 2,32). Daí, a procissão das velas na liturgia da missa, no rito próprio do Missal, e que deve ser valorizada sobretudo quando a celebração cai em domingo, onde a participação do povo é mais expressiva.

 

43 – A festa evoca, portanto, o sentido de purificação e de luz (e não tanto a purificação ritual de Maria, como já se falou). Ml (1ª leitura) descreve o efeito purificador de Deus quando da visita ao templo, e Lc (Ev), revela o Cristo como “Luz das nações”. A luz então aqui passa a ter um sentido profundo de iluminação e purificação, na aplicação concreta para as nossas vidas, como deixa transparecer também a segunda leitura.O texto do Evangelho constitui a clássica profecia de Simeão (O cântico “Nunc Dimmittis”), que, além do tema da luz, fala também da paixão do Senhor e dos sofrimentos de sua Mãe dolorosa.

 

44 - Leituras bíblicas da festa:

 

Ml 3,1-4

Sl 24(23)7.8.9.10b

Hb 2,14-18

Lc 2,22-40 ou 2,22-32

 

Nota: Para celebração em dia de semana, como ocorre mais, e como foi dito na introdução das festas, suprime-se uma das leituras.

 

TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR (6 de agosto)

 

45 - Esta festa, também fixa, tem forte expressão na liturgia oriental, tendo se tornado objeto de celebração no rito sírio-oriental já no século V. Na Igreja de Roma, foi introduzida no século X. Seu tema específico é a glória, que passa pela cruz. Como se vê, os relatos bíblicos, objeto da festa, são substancialmente idênticos nos três evangelhos sinóticos. Sua liturgia se distingue, pois, nos três ciclos, mas só pelos evangelhos.

 

46 - O tema da transfiguração sugere aprendizagem na vida cristã: da cruz para a glória, como sugere São Paulo em suas epístolas. São Pedro, inicialmente, rejeita tal idéia (cf. Mt 16,22; Mc 8,32), mas é convidado pelo Senhor para participar do acontecimento na montanha, como também o convidaria, depois, para a sua agonia no Getsêmani (cf. Mc 14,33).

 

47 - A liturgia nos convida também a reforçar a dimensão mística da fé, pois somos peregrinos neste mundo e não temos aqui cidade permanente (cf. Hb 13,14). Não devemos assim viver satisfeitos com nossas “tendas”, mesmo se feitas no alto da montanha, instalando-nos aqui, como queria Pedro, esquecendo-nos, porém, dos irmãos, que, nas periferias do mundo, sofrem todo tipo de desigualdade e de injustiça.

 

48 - Num mundo, como o nosso, que perdeu a cabeça, dominado por mitos e por deuses sangrentos, onde as Bolsas ditam o valor de cada pessoa, o Cristo não hesita em assumir a cruz, convidando-nos a fazer o mesmo (cf. Lc 9,23), seguindo-o em sua caminhada de paz e de redenção. Na dinâmica do reino, a glória passa pela cruz, assim como na lógica da vida não deve haver vitória sem luta.

 

49 - Na missa, como já se falou, as leituras bíblicas são as mesmas para os três ciclos, exceto o evangelho, que muda de acordo com o ano, na mesma narração do fato bíblico. São elas:

 

Ano A

 

Dn 7,9-10.13-14

Sl 96(97) 1-2.5-6.9

2Pd 1,16-19

Mt 17,1-9

 

Ano B

 

Dn 7,9-10.13-14

Sl 96(97) 1-2.5-6.9

2Pd 1,16-19

Mc 9,2-10

 

Ano C  

 

Dn 7,9-10.13-14

Sl 96(97) 1-2.5-6.9

2Pd 1,16-19

Lc 9,28b-36

 

EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ (14 de setembro)

 

50 - Também é de forte conotação oriental a festa da Exaltação da Santa Cruz e, como as duas anteriores, é também fixa, com possibilidade de celebração em domingo, quando nele cai. Revela-nos esta festa a presença da glória divina no sofrimento e na morte de Jesus. Seu ponto alto é a teologia joanina da glória de Cristo: a sua exaltação se dá na elevação da cruz (cf. Jo 3,14; 12,32). Aqui, “elevação” tem dois sentidos, que se completam: elevação do chão (ato físico da suspensão na cruz), e elevação na glória (pela ressurreição e ascensão), decretada pelo Pai. Na liturgia oriental, a festa aparece no século V, e em Roma no século VII.

 

51 - Bem no início do Cristianismo, a cruz era apenas instrumento material da morte de Cristo, instrumento de maldição no pensamento bíblico do Antigo Testamento (cf. Dt 21,23), mas já na era apostólica se transforma em símbolo do sacrifício redentor e até de Cristo e da vida cristã (cf. 1Cor 1,17-18; Gl 3,13; 6,14; Fl 3,18 etc.).

 

52 - Os temas centrais da celebração são, pois, a morte de Cristo e a redenção que ele nos conquistou. A antífona é a mesma da missa da Quinta-Feira Santa, no início do Tríduo Pascal, de espiritualidade paulina (cf. Gl 6,14), e tanto a primeira leitura como o evangelho são uma prefiguração e símbolo do Senhor “exaltado”, na visão teológica de São João. Já a segunda leitura, no cômputo de três, em celebração dominical, é a clássica passagem da kénose de Cristo, isto é, de seu esvaziamento e de sua humilhação, que tanto enfatizou São Paulo.

 

53 - Tem grande valor a celebração desta festa, principalmente no nosso Ocidente materializado e secularista, dado ao consumo e voltado para o imediatismo dos prazeres que a vida moderna propaga. Mas, como diz tão bem John Konings, “Contemplar a cruz não é afundar no dolorismo, mas reconhecer o amor de Deus o mundo do desamor”.

 

54 - Como se sabe, o único retrato que temos de Deus é Jesus, e Jesus é pura bondade e compaixão. É perdão sem reservas (cf. Lc 23,34) e amor até o fim (cf. Jo 13,1), amor, pois, crucificado. Daí, o simbolismo profundo da cruz e o valor desta festa para os nossos tempos.

 

55 - Os textos bíblicos da celebração são:

 

Nm 21,4b-9

Sl 77(78) 1.2.34-35.36.37.38

Fl 2,6-11

Jo 3,13-17

(Vale aqui a “nota” da primeira festa)

 

BIBLIOGRAFIA

 

- O Ano Litúrgico (Adolf Adam)

- Liturgia Dominical (John Konings, S.J.

- Missal Romano

- Concílio Vaticano II (LG, SC e GS)

João de Araújo

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João de Araújo - Solenidades do Senhor no Tempo Comum