REDESCOBRINDO O VALOR DA EUCARISTIA
1 - Em nosso tempo, como dado positivo, há uma busca incessante do sentido da Eucaristia, tanto no aspecto celebrativo, com esforço pastoral de celebrações mais vivas, quanto na compreensão de seu mistério, sem aquelas especulações teológicas do passado.
2 - Podemos registrar o zelo da Igreja com a promulgação de várias orientações catequéticas, pastorais e teológicas sobre o sacramento, como também com a realização de celebrações, como congressos, ano eucarístico, sínodos, e ainda com o contínuo incentivo a estudos e aprofundamento do mistério eucarístico.
3 - Assim, a Eucaristia vai sendo redescoberta como o cerne da vida da Igreja, como fonte da vida apostólica, missionária e de compromisso libertador. Passa da prática muitas vezes meramente devocional e subjetiva para a prática eclesial, comunitária, celebração do povo de Deus, despertando para engajamentos práticos e de participação na vida da Igreja. Isso significa uma volta à espiritualidade eucarística dos primórdios da Igreja, na linha apostólica e dos Santos Padres, o que certamente desperta em nós sentimentos de alegria e de ação de graças ao Senhor.
CELEBRAÇÃO E CULTO
4 - No passado, como sabemos, sobretudo na Idade Média, como também depois, devido a teses da Reforma, houve ênfases impróprias em aspectos do sacramento, quer no seu estudo por teólogos, quer na prática pela maioria dos fiéis. O Concílio de Trento respondeu aos reformadores, com ortodoxia, mas não forneceu pistas pastorais para as gerações seguintes. Assim, o culto à Eucaristia, p. ex., que já era celebrado com exageros em séculos anteriores, ganhou mais relevância ainda, em detrimento da celebração e da comunhão: os fiéis adoravam o Senhor presente na Eucaristia, mas não comungavam o seu Corpo sacramental.
5 - Nessa linha de observação, podemos dizer que a celebração, da qual procede o culto, passou a segundo plano; o sacrário, importante, mas não essencial, passou a ter mais importância que o altar. Os fiéis se contentavam então em assistir à missa, se é que assistiam. Daí, a passividade de tantos séculos, que reinou na Igreja, fruto da compreensão míope de tão excelso acontecimento pascal.
6 - Em nosso tempo, o sopro feliz do Espírito de Deus fez surgir o Concílio Vaticano II, e este colocou a reforma litúrgica como preocupação conciliar, concretizando o sonho do Movimento Litúrgico, que precedeu o Concílio.
7 - Digamos, porém, que, embora com amplos progressos, a verdadeira reforma não foi até hoje plenamente assimilada, daí a ausência ainda de uma participação viva e consciente como a desejada pelo Concílio, como também a ausência ainda de uma compreensão mais nítida entre celebração e culto, na desejável compreensão de sua diferença teológica.
8 - Vemos assim que, se antes se valorizava exageradamente o culto, em detrimento da celebração, hoje às vezes acontece o contrário: valoriza-se muito a celebração, em formas externas de criatividade e de inculturação (esta nem sempre, porém, a desejada pela reforma), e descuida-se, na prática litúrgica, do culto.
9 - Se é verdade que a Eucaristia está ordenada antes de tudo à celebração e à comunhão, e que os sinais sensíveis que Cristo escolheu são os de refeição fraterna (e isto devemos sempre afirmar), é verdade também que ela - a celebração - não exclui a adoração, o culto, de acordo com as normas litúrgicas. O fato, pois, de Cristo não se referir, no relato bíblico institucional da Eucaristia, ao culto latrêutico de seu Corpo sacramental, não desautoriza a Igreja de o fazer, lembrando aqui o testemunho de Justino, por exemplo, no século II, quando, no capítulo 65 de sua Apologia, fala da Eucaristia que é levada aos ausentes. O testemunho de Justino é expressão clara da fé da Igreja, já desde o início, a qual não hesita em afirmar a presença permanente do Senhor no pão consagrado, justificando assim, e até exigindo, o culto eucarístico fora da Missa. Mas - digamos - é preciso ter sempre em mente a primazia da celebração e da comunhão sacramental sobre o culto. Pode-se afirmar, numa correta compreensão do mistério eucarístico, que a celebração é mistagogia para o culto, e o culto mistagogia para a celebração.
10 - É preciso, sim, entender um dado litúrgico fundamental: a adoração na celebração da Eucaristia é dirigida ao Pai, pois o Pai é fonte e termo da liturgia, por isso é a ele que se dirige toda a oração da Igreja, pela mediação de Cristo e no Espírito Santpo. O culto eucarístico ao Filho se faz fora da celebração, dada a presença permanente do Senhor no Pão, como sempre entendeu a Igreja. O gesto de ajoelhar-se então no momento da narrativa institucional ou consagração não faz sentido, ainda mais quando sabemos que a assembléia celebrante é um povo sacerdotal, e a posição corporal do sacerdote é sempre de pé.
11 - Diga-se ainda que não conseguimos também uma consciência mais viva da Eucaristia como sacrifício, enfatizando muito nossas celebrações o aspecto festivo, convivial, importante, diga-se, para evitar equívocos, mas sem a consciência de que a Eucaristia é, sacramentalmente, o memorial do sacrifício da cruz, como afirmou sabiamente o Concílio Vaticano II e como se dirá mais adiante.
A FINALIDADE PRIMEIRA DA EUCARISTIA
12 - Para uma compreensão mais clara do que se afirmou acima, deveríamos ater-nos, em nossas reflexões e em nossas práticas litúrgicas, à intenção de Cristo ao instituir a Eucaristia. Ora, o que Cristo nos ordenou é que celebrássemos o memorial de sua morte e de sua ressurreição (aqui, teologicamente, sacrifício verdadeiro, dimensão que a Eucaristia recebe do Calvário), memorial, pois, de sua páscoa, tornando-a nossa, de maneira viva e sacramental. E tal celebração se realiza em chave de refeição fraterna, sob os sinais do pão e do vinho (aqui, explícita, a dimensão convivial, que a Eucaristia recebe do Cenáculo, podemos dizer). Mas, entendamos bem, não se trata de um sacrifício seguido de uma refeição, mas de uma refeição que já é por si mesma sacrifical, cuja finalidade primordial vai ser, como se dirá em seguida, a transformação dos comungantes no corpo eclesial de Cristo.
13 - Devemos saber, pois, que a instituição da Eucaristia se ordena, antes de tudo, à edificação da Igreja, como corpo místico de Cristo, eclesial e escatológico. Aqui, abre-se a compreensão do adágio “A Igreja faz a Eucaristia, e a Eucaristia faz a Igreja”.
14 - Na oração eucarística, é fundamental ver as articulações de seus momentos, quando, p. ex., a primeira epiclese, isto é, a invocação do Espírito Santo sobre os dons do pão e do vinho (oblatas), se ordena à segunda invocação, pedindo esta a transformação escatológica dos comungantes, ou seja, que todos, comungando do corpo sacramental, sejam um só corpo eclesial, Corpo de Cristo, e um só espírito, epiclese, pois, de comunhão.
15 - Aqui é preciso ir mais longe na reflexão para entendermos o verdadeiro sacrifício de Cristo, no seu ofertório ao Pai: a graça de tal sacrifício tem uma destinação certa, definitiva e salvífica: “Por vós”, isto é, "por nós", para a nossa salvação. A esse sacrifício se une então o sacrifício da Igreja e de cada cristão, tornando-se na verdade um único sacrifício.
16 - Na prática litúrgica, infelizmente, às vezes, não se tem consciência desse dado litúrgico e teológico, podendo então nascer daí uma celebração simplesmente festiva, de caráter externo, mas descomprometida, ou uma participação meramente subjetiva e até mesmo intimista, longe, pois, da consciência eclesial, isto é, de assembleia cristã, de povo de Deus, chamado a celebrar o memorial da morte e ressurreição do Senhor, penhor de nossa salvação.
SACRIFÍCIO E SACRAMENTO
17 - “A Eucaristia é o único sacrifício de Cristo, o da cruz, tornado presente por ele, feito “contemporâneo” nosso no sacramento: porque os atos salvadores de Deus nunca deixam de ser contemporâneos nossos, pois estão eternizados no Senhor glorioso, Cristo Jesus”. Sacrifício que é, pois, sacramento, e sacramento que é sacrifício. Mas - vejamos - não se trata de duas realidades (p. ex., sacrifício visto na consagração, e sacramento, sinal sensível e visível, visto na comunhão e no culto), mas sacrifício e sacramento, simultaneamente, como dois aspectos do mesmo mistério. Sacrifício historicamente irrepetível e, no espaço, inamovível, mas sacramentalmente real e presente no mistério do altar. “O acontecimento da cruz é algo essencial à pessoa de Cristo”, por isso a páscoa se eterniza nele.
18 - Não é necessário, pois, que o fato histórico do Calvário se repita, ou se renove, porque não deixou de ser realidade em Cristo. Assim, quando o Senhor, pela força do sacramento, se faz presente em nossas eucaristias, ele nos traz o sacrifício da cruz, presente nele, porque ele mesmo é o sacrifício, a eterna oferenda por nós.
19 - Na fé da Igreja, o Cristo crucificado é então agora o Cristo ressuscitado, escatológico, mas, como diz Cabasilas, não renunciou ele às marcas gloriosas da crucifixão, as quais sempre nos traz na sua presença entre nós. Seu ser humano e divino já alcançou a glória definitiva e escatológica, por isso ele não está mais sujeito aos limites do tempo e do espaço. Digamos ainda: sua humanidade glorificada aponta para a nossa futura glorificação, pois, mortos com ele e nele ressuscitados, com ele vamos aparecer revestidos de glória (cf. Cl 3,4). Saibamos então: o Cristo, crucificado e ressuscitado, o Kyrios, já vive o eterno “hoje” de Deus, em plena e eterna glorificação, à direita do Pai, e em plena realeza celeste (cf. Rm 8,34; Hb 10,12; 1Pd 3,22).
20 - A realidade sacrifical da Eucaristia está literalmente explícita no relato institucional da Ceia Santa (“Tomai, todos, e comei, isto é o meu Corpo, que será entregue por vós...” “Tomai, todos, e bebei, este é o cálice do meu Sangue, que será derramado...”), como se pode ver nos sinóticos e em São Paulo, como também em Jo 6,51-58, aqui com as referências de Cristo ao seu Corpo e ao seu Sangue. Daí, podermos concluir que Cristo dispôs que seu sacrifício pascal se tornasse presente na páscoa das gerações, ou seja, em nossas eucaristias, o que se tornou possível graças ao sinal profético do Cenáculo (ver quadro).
21 - Para uma compreensão mais viva do que aqui se expõe, é bom sabermos que, se Cristo não tivesse celebrado a ceia pascal com os seus discípulos, na véspera de sua morte, e ordenado a sua iteração pelas gerações futuras, o evento do Calvário teria ficado esquecido nas coordenadas do tempo e do espaço, isto porque, como evento físico, histórico e temporal, ele pertence ao passado.
22 – Saibamos então que o sacrifício do Calvário, como evento salvífico e fundante, transcende o tempo e o espaço, e se faz presente a nós, em chave sacramental, como sacrifício perene da própria Igreja, em todos os tempos, pois Cristo quis unir também a sua Igreja, como esposa imaculada, ao seu próprio sacrifício (cf. Ef 5,27). A Eucaristia concretiza, em mistério, esse sacrifício único, perene e de louvor, cumprindo assim a profecia do Antigo Testamento (cf. Ml 1,11). O pós-Sanctus da Oração Eucarística nº III tem o mérito de aludir à reminiscência bíblica aqui referida quando diz “...para que vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito”.
A ORAÇÃO EUCARÍSTICA, CORAÇÃO DA EUCARISTIA
23 - Um dado fundamental para a compreensão da Eucaristia, e que não é muito proposto nas catequeses eucarísticas, é o estudo da Oração Eucarística, no todo de sua estrutura literária e teológica, evitando assim a visão redutiva, muito comum, ao momento da consagração. Acima, já se acenou nesta direção, nas referências às duas epicleses.
24 - Como sabemos, as orações eucarísticas, com suas raízes judaicas, são um tesouro da eucologia cristã. Elas refletem a fé da Igreja, ao mesmo tempo rezada e crida. São a “Lex orandi” a serviço da “Lex credendi”, ou seja, a norma da oração instruindo a norma da fé, como aconteceu nos primeiros séculos da Igreja, sobretudo no exemplo efetivo dos Santos Padres.
25 - Finalmente, estamos convencidos de que, se nos deixássemos instruir pela Oração Eucarística, veríamos não uma presença às vezes estática, devocional, do Senhor, na Eucaristia, mas uma presença verdadeiramente dinâmica, sacramental, aqui em densidade mais profunda, é verdade, mas sem descurar a presença real também em outros momentos, como na Liturgia da Palavra, na assembleia celebrante e na pessoa do sacerdote.
26 - Enfim, voltados sempre para o núcleo fundamental de nossa fé, que é o Mistério Pascal de Cristo, seríamos despertados primeiramente para o desejo da comunhão sacramental, com seu sentido fraterno e de compromisso missionário, e, depois, viria então a atitude adorante, também necessária, com relação ao sacramento. Veríamos também que todo o formulário da Oração Eucarística (Prefácio, Santo, pós-Sanctus, 1ª epiclese, relato bíblico, anamnese-ofertorial, 2ª epiclese, intercessões e doxologia, com o Amém final) forma uma unidade orante, consecratória, de cunho bíblico, sacramental e teológico.
27 - Finalmente, conscientes de nossa fé batismal e mergulhados no mistério profundo de nosso Deus, veríamos toda a celebração eucarística como puro louvor de Deus, oração, pois, ao mesmo tempo ascendente (na voz laudatória e suplicante da Igreja e na mediação de Cristo), e descendente (com a resposta do Pai, dando-nos o Pão do Céu e projetando-nos, desde agora, já nos horizontes da eternidade).
BIBLIOGRAFIA
- A celebração na Igreja - Vol. 2 - Diversos autores - Loyola
- A Eucaristia - José Aldazábal - Vozes
- Um só Corpo - Cesare Giraudo - Loyola
João de Araújo