INTRODUÇÃO
1 - O silêncio, por causa de sua índole mistérica e de sua nota bíblica, sempre foi um dado essencial à Liturgia. “O silêncio do infinito me aterroriza”, dizia Pascal, mas nós podemos dizer que o silêncio de Deus nos edifica e nos encanta, pois é no silêncio que Deus nos fala e se nos revela (cf. 1Rs 19,11-13). O silêncio é, pois, liturgia, e não mera ausência de sons ou de vozes.
2 - Digamos ainda que o silêncio não é pausa para descanso na celebração, ou momento de espera e de passagem de um rito a outro. É, sim, convite para entrar no coração da liturgia, no cerne do mistério pascal. O silêncio litúrgico nos coloca disponíveis à ação do Espírito Santo. O Espírito nos fala no silêncio, de modo que encher-se de silêncio é encher-se do Espírito. Onde o mistério é mais profundo, mais elevado deve ser o silêncio, pois aí age mais intensamente o Espírito de Deus.
3 - Colocado em seu devido lugar na liturgia e respeitada a sua ministerialidade, o silêncio se torna não só momento oportuno que favorece uma participação mais viva, como também já pode ele mesmo ser entendido como expressão de viva participação.
4 - Romano Guardini, que teve viva participação no Movimento Litúrgico do século XX, sobretudo entre os jovens, dizia que o silêncio é a condição primordial para toda ação sagrada e, se fosse interrogado, diria que é com o aprendizado do silêncio que se deve começar a vida litúrgica. De fato sabemos que o silêncio favorece a meditação, mergulha-nos no mistério de Deus e de nós mesmos, como também favorece em nós a contemplação dos bens eternos.
5 - A realidade, porém, de muitas de nossas celebrações pode ser um desafio para a aprendizagem do silêncio, pois estas passaram de um acontecimento até então silencioso e equilibrado para celebrações exageradamente sonoras, cheias de palavras e de músicas, às vezes estridentes. E quando isso acontece, é notório o prejuízo para a mensagem do canto e, o que é pior, acaba abafando a voz da assembléia celebrante, sem ainda levar em conta que muitos dos que vêm celebrar já foram “bombardeados” pelo vozerio atordoante do mundo em que vivemos.
6 - A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II (Cf. SC nº 30) redescobriu a importância do silêncio litúrgico, retomando assim os valores de uma venerável tradição da Igreja, inspirada na revelação bíblica. Assim, o silêncio não pode mais ser descuidado, e até sacrificado, em nome de uma suposta participação ativa que se quer expressar apenas com vozes e gestos.
7 - O episcopado francês, falando das exigências mal-orientadas e reguladas de participação ativa (“as quais não deixam mais espaço a um só momento de silêncio”), convida também a “observar a diferença profunda entre o silêncio de inércia das assembléias individualistas e informais, que precisa desaparecer, e o silêncio comunitário, alimentado e preparado pelo canto e pela catequese. O silêncio é o ápice da oração; é pela sua qualidade que se mede o esforço de participação”.
QUALIFICAÇÃO LITÚRGICA DO SILÊNCIO
8 - Analisando o texto dos diversos documentos da Igreja e de autores consagrados, percebe-se a qualificação do silêncio como “parte da celebração”, uma descoberta então feliz, que precisa ser entendida e aceita por todos, afastando aquele conceito às vezes negativo, em que se vê o silêncio como momento estéril, de não participação ou de inércia. Assim, em chave pedagógica, o silêncio é indicado como um dos elementos da liturgia a estar sempre presente na formação litúrgica de toda a Igreja.
9 - De acordo, pois, com a Instrução do Missal (IGMR nº 45), a natureza do silêncio depende do momento em que ele tem lugar na celebração, havendo sempre uma motivação mais geral que é a de promover a participação ativa dos fiéis (SC 30), levando-os a uma disposição viva para celebrarem os divinos mistérios, inserindo assim a assembléia no mistério que se celebra, pois o silêncio, favorecendo a escuta da Palavra de Deus, favorece também a sua acolhida e a resposta da meditação (IGMR nº 56).
TIPOLOGIA DO SILÊNCIO LITÚRGICO
10 - Podemos falar de “tipos” de silêncio dependendo do momento em que ele começa a fazer parte da celebração litúrgica, como ensina a Instrução do Missal. Em síntese, podemos assim descrever tais tipos: silêncio de recolhimento (para a oração pessoal); silêncio de assimilação (recomendado durante as orações presidenciais); silêncio de meditação e de interiorização (proposto para depois da Palavra de Deus e da homilia); silêncio de adoração (que deve estar presente na comunhão ou no culto eucarístico). Explicitemos um pouco mais o que aqui se expõe, para fixação.
a) - Silêncio de recolhimento
11 - Pelo silêncio de recolhimento, a assembléia é convidada a tomar consciência de que está na presença de Deus e poder assim formular, no íntimo do coração, a sua oração pessoal. O recolhimento pessoal, silencioso, assume várias formas ligadas a aspectos da tradição. Assim temos:
I - O silêncio que se deve cultivar antes de se iniciar a celebração, como momento de preparação e de quietude, como também nos momentos de visita a igrejas ou oratórios. Pode estar ele no começo de um rito, onde a forma mais solene é a da prostração, como se vê no início da ação litúrgica da Sexta-Feira da Paixão. Deve também estar presente no Ato Penitencial da missa, “para dar oportunidade aos penitentes de se recolherem no exame de consciência e moverem o coração no sentido de alcançar verdadeira contrição dos pecados”.
II - Nas preces da comunidade ou oração universal, uma pausa de silêncio pode substituir a resposta dos fiéis (IGMR 71c), e nas orações solenes da Sexta-Feira da Paixão, depois das monições, segue-se uma pausa silenciosa da assembléia, e a esta segue a oração do presidente, como “venerável tradição romana” , participação, pois, silenciosa, aparentemente menos ativa, mas que pode conferir à invocação uma admirável plenitude. Sobre o gesto silencioso, de imposição das mãos, nas ordenações episcopais e sacerdotais, Hipólito de Roma diz: “Todos se calarão e rezarão em seus corações, para pedir que desça o Espírito Santo”. Antes da Liturgia da Palavra, e como sua preparação, o silêncio de recolhimento pode também ser muito útil.
b) - Silêncio de assimilação
12 - Tal silêncio religioso, de assimilação, é-nos proposto não só durante as orações presidenciais da missa, principalmente na Oração Eucarística, a mais importante de todas, mas também durante a oração consecratória de outras celebrações não anafóricas, como, p. ex., das ordenações, na missa do Crisma na Quinta-Feira Santa, na profissão religiosa, na consagração das virgens etc.
c) - Silêncio de meditação e de interiorização
13 - Temos aqui o silêncio de resposta à Palavra de Deus, convidando “a meditar brevemente o que se escutou” (IGMR 45), como também para “facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a palavra de Deus e com a voz pública da Igreja” (IGLH 201-202), em tudo favorecendo “uma compreensão mais profunda da palavra de Deus e o conseqüente assentimento do coração”. Na Liturgia da Palavra, esse silêncio é recomendado depois das leituras, como também após a homilia (IGMR 56). Para as leituras bíblicas da Liturgia das Horas, a mesma recomendação também é feita.
d) - Silêncio de adoração e de louvor
14 - É o silêncio orante, que brota do mistério, que jorra da Palavra, que produz encantamento interior, mostrando a nossa vida “escondida com Cristo em Deus” (cf. Cl 3,3). Nesse silêncio orante, devemos preparar-nos para receber com fruto o Corpo e o Sangue do Senhor, união que pode prolongar-se, depois, no culto eucarístico fora da Missa. Esse mesmo silêncio adorante é o que acompanha a adoração da cruz, na Sexta-Feira da Paixão, não só na forma pessoal, mas sobretudo na coletiva, quando a cruz é apresentada, em silêncio, à assembléia celebrante. Tal silêncio é ainda proposto pelo Missal (IGMR 88), para o momento após a comunhão, quando oportuno.
CONCLUSÃO
15 - Devemos então notar que o Concílio Vaticano II fez reflorescer o silêncio como momento celebrativo e forma plena de participação litúrgica, silêncio então pedagógico e iniciador, como dizia Dionísio, o Areopagita, capaz de criar o clima e as atitudes espirituais necessárias à experiência litúrgica. Ao mesmo tempo, o silêncio oferece às pessoas, comprometidas com a ação comunitária, um espaço vital para a sua inserção na ação celebrativa, com presença de viva interiorização. E se é certo que ele “abre a fonte interior de onde brota a Palavra”, o cultivo do silêncio na Liturgia é sinal de maior maturidade celebrativa, não sendo então mutismo espiritual, mas momento vivificante da graça, na ação do Espírito.
16 - Finalmente, digamos que é Cristo o verdadeiro modelo dos cristãos na atitude de silêncio orante (cf. Mt 14,23; Mc 1,35; Lc 5,15; 9,18; Jo 6,15). Ele veio para manifestar o mistério da salvação de Deus, “envolvido em silêncio” nos séculos eternos (cf. Rm 16,25). Que nossas comunidades aprendam, pois, de novo a ser silenciosas e voltem a percorrer o caminho de Cristo, na intimidade mais profunda com o Pai e na plenitude mais viva do Espírito Santo.
BIBLIOGRAFIA
- IGMR - Instrução Geral sobre o Missal Roman
- Dicionário de Liturgia - Paulus
- CNBB - Estudos - Nº 79
- IGLH - Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas
- A Sagrada Liturgia - Documentos Pontifícios - Nº 144
João de Araújo