1 - Na véspera de sua paixão, Jesus orou no Monte das Oliveiras (cf. Mt 26,36) e teve sua paixão concretamente iniciada. Desejando ardentemente celebrar a páscoa com os seus discípulos (cf. Lc 22,14-15), ele então os reúne e com eles celebra a Ceia Santa. Sua morte sacrifical é aqui antecipada sacramentalmente, isto é, sua entrega na cruz, que aconteceria no dia seguinte, aqui se faz real, em mistério, pois a antecipação sacramental da própria morte está fora das estreitezas da ação puramente humana.
2 - O Senhor celebra a Páscoa com os seus discípulos e, nessa celebração, institui a nova Páscoa, a Eucaristia das gerações, onde seu Corpo e Sangue são dados em alimento, única garantia, aliás, de que o verdadeiro amor (do mandamento novo), possa gerar vida, num compromisso missionário e libertador. E com a instituição da nova Páscoa, a Eucaristia, deixa-nos também a plena participação em seu sacerdócio único e eterno. Portanto, Eucaristia e sacerdócio nascem juntos, da mesma fonte (Cristo Nosso Senhor), daí ser inseparáveis.
3 - Sabendo, pois, que chegara a sua hora, o Senhor, tendo amado os seus, amou-os até o fim (cf. Jo 13,1), isto é, até as últimas consequências, ao extremo do amor. Antes de partir para a casa do Pai, deixa-nos o seu testamento, que não é mero escrito de louváveis desejos ou de meros sentimentos utópicos. Deixa, sim, um mandamento novo, até então só por ele vivido e conhecido, simbolizado no Lava-pés, mandamento do amor eterno. Amor, pois, não como o nosso - frágil, interesseiro, possessivo e de barro, amor rastejante, - mas amor espelhado em sua vida, cujo segredo vital é a medida “como eu vos amei”.
4 - A liturgia da Quinta-feira Santa é a mesma para todos os anos, e todos os seus textos são de intensa riqueza. Na oração do dia, “que se concentra na ideia da instituição da Eucaristia como sacrifício e como banquete do amor”, pedimos a Deus que também nós cheguemos à plenitude da vida e do amor. A leitura do Antigo Testamento vai nos falar do cordeiro pascal, cujo sangue serviu de sinal para a libertação do povo de Israel, e a ceia noturna daquele povo foi uma introdução à saída da escravidão, tudo portanto como figura da libertação definitiva que, mais tarde, Deus providenciaria na pessoa de seu próprio Filho, como recordamos na liturgia e atualizamos de maneira sacramental.
5 - Como sabemos, na liturgia o evangelho sempre narra a temática principal da celebração, o que, porém, não acontece na Quinta-Feira Santa, onde a instituição da Eucarística nos é transmitida pela narração de São Paulo, na segunda leitura, como tradição paulina da comunidade primitiva, entendida pelos biblistas e liturgistas como o relato institucional mais antigo.
6 - A celebração da Quinta-Feira Santa é, pois, solene, com incensação, ornamentação da igreja e do altar. Canta-se nela o Glória, que pode ser também ao som de campainha ou de sinos, mas não se canta o “Aleluia” nem se recita o “Creio”. Estes ficam como “reserva litúrgica” para a Vigília Pascal do Sábado Santo: o “Aleluia”, para a aclamação do Evangelho, e o “Creio”, para a celebração do Batismo e para a renovação das promessas batismais da assembleia celebrante.
7 - No evangelho, de João, vemos o exemplo de Jesus, lavando os pés dos discípulos e dando-lhes o mandamento do amor, no rito do “Lava-pés”, que a Igreja também conserva, em mimese litúrgica. Em algumas comunidades já é costume os fiéis lavarem os pés uns dos outros, sem distinção de classes ou de pessoas, o que, segundo nos parece, pode ser mais significativo do que o simples rito que o sacerdote realiza, muitas vezes reduzido a mera sugestão ou a simples observância de rubrica.
8 - No que diz respeito à celebração, a exemplo do que se afirmou sobre o Domingo de Ramos, a liturgia da Quinta-Feira Santa vai estar inserida também na dupla característica do Mistério Pascal: a cruz e a glória, como pode-se ver desde o canto de entrada, inspirado em Gl 6,14 (Gloriar-se na cruz de Cristo), tema caro a São Paulo e que vai estar nítido também na Sexta-Feira Santa. Aqui já é possível afirmar que não se pode compreender uma cristologia da glória sem a relação teológica com a cristologia da cruz. A nossa fé une na verdade uma à outra, tornando-as inseparáveis.
9 - Como orientação litúrgica, é bom lembrar que na Quinta-feira Santa, em lugar do “Aleluia” canta-se a aclamação do “mandamento novo”, e que, após o canto do Glória, o órgão e os outros instrumentos musicais devem silenciar-se. Assim, a liturgia mostra claramente que a Igreja já se revestiu do clima da Paixão do Senhor. Podemos dizer então que a alegria da Quinta-feira Santa é, na verdade, uma alegria misturada com a dor, uma alegria reticente, diríamos.
10 - Já, pois, imersa no mistério da Paixão, e imitando o despojamento do Senhor, também no fim da celebração o altar é desnudado, e os ritos finais são omitidos, cedendo lugar à procissão do Santíssimo para a capela lateral, ou outro local apropriado, em transladação. Em seguida, é recomendável a adoração do Santíssimo, porém só até à meia-noite. É muito desejável ainda que, nesse dia, onde for possível, se dê a comunhão sob as duas espécies.
11 - Podemos afirmar, teologicamente, que o discurso e os gestos do Cenáculo continuarão vivos em todos os tempos, dado o caráter sacramental da Liturgia. Assim, em cada Eucaristia que celebramos, Cristo põe-se a nosso serviço e continua a lavar-nos os pés, convidando-nos a fazer o mesmo com relação a nossos irmãos. Na verdade, o rito simbólico do “Lava-pés” é um apelo contínuo para vivermos o serviço fraterno, exigência, aliás, que nasce de nossa vida sacramental e eucarística.
12 - A Quinta-Feira Santa quer colocar-nos, na objetividade da Liturgia, diante não simplesmente de um novo mandamento, mas diante da revelação do verdadeiro amor de Deus, manifestado no seu Filho Jesus, amor, pois, crucificado. Sim, amor crucificado, que se doa totalmente, que não se regozija, pois, com parcialidades ou com limites. Dar-se inteiramente é o segredo desse amor.
13 - Vejamos ainda. A marca do amor divino, revelado em Cristo e demonstrado na Cruz, é a expressão de um amor que não se limita a dar-se somente pelos amigos ou pelos corações nobres, mas dar-se, como oferenda viva, sobretudo pelos inimigos e pecadores. Amor, pois, que não exige retribuição, portanto gratuito e desinteressado. Amor então não possessivo, que respeita a liberdade do ser amado, inclusive quando contraditória aos ditames do amor. Tudo isso o Senhor quis ensinar no rito do Lava-pés, este como símbolo mais eloquente do amor celebrado na Eucaristia e que deve ser sempre o ícone do amor da Igreja.
14 - A vida cristã deveria ser uma constante epifania do amor crucificado. É preciso, pois, insistir na grandeza desse amor. Na cruz, como se vê, ele se mostra de braços abertos, a fim de abraçar toda a humanidade, para salvá-la. De mãos cravadas está na cruz, mostrando como que impedidas de agredir e de condenar. Amor, pois, diferente dos amores do mundo, estes, sim, tantas vezes mentirosos, superficiais e enganadores. Amor crucificado, místico e eterno, que águas torrenciais jamais apagarão (cf. Ct 8,7) e que poderes infernais tentam sempre destruir, vendo-se, ao contrário, sempre por ele destruídos. Amor que dá a vida e a retoma, amor que é vida, e vida em abundância (cf. Jo 10,10.17-18).
15 - É possível que muitos pensem ser utópico falar de um amor assim num mundo de desamor como o nosso. Mas se o mundo é de desamor é porque ainda não conhece um amor assim. Nós, cristãos, somos responsáveis pela manifestação ao mundo desse amor salvífico, como se falou antes, mas muitas vezes nossa vida é negação e rejeição do amor da cruz. Não raro pedimos a Deus em nossas orações que nos dê uma cruz mais leve, se possível não de madeira, mas de isopor, quem sabe. Não nos passa pela cabeça que uma cruz assim, de isopor ou de plástico, encomendada por nós, no nosso jeito, não suportaria as exigências do verdadeiro amor.
16 - Podemos notar então que tudo na Quinta-Feira Santa nos leva à descoberta do amor. Cristo nos dá um mandamento novo, e no rito do “Lava-pés”, como já foi lembrado, ele nos mostra que veio não para ser servido, mas para servir, mandando-nos fazer o mesmo, a fim de o seguirmos nas trilhas da redenção. É ele, pois, que nos escolhe e nos ama primeiro, na nossa condição real de pecadores. Não espera que nos tornemos dignos de seu amor, mas ama-nos em nossa indignidade. Esta é a ótica de todo o Mistério Pascal: Deus nos ama com amor misericordioso, acima de nossa compreensão. Não nos ama porque somos amáveis, mas se somos amáveis é porque ele nos ama.
Leituras bíblicas da Quinta-Feira Santa:
1ª leitura: Ex 12,1-8.11-14
Salmo Responsorial: 116B(115),12-13.15-16bc-17-18 (R/. cf. 1Cor 10,16)
2ª leitura: 1Cor 11,23-26
Evangelho: Jo 13,1-15
João de Araújo